Era início de 2018, eu tinha uma empresa de engenharia aberta com meu amigo Flávio Ulhoa e estávamos tocando umas duas ou três obras simultâneas sem, necessariamente, ganhar muito dinheiro pra isso. Na verdade estávamos era bem fudidos mesmo, no limite da nossa capacidade, carentes de gestão e tecnologia, e reféns de alguns (muitos) processos do século XX que a construção civil nos impunha.
Tínhamos um estagiário correria que resolvia boa parte das missões logísticas demandadas pelas obras, o Luquita da Galera. Ele era bom, mas era pouco. Precisávamos de mais um para não esquecer de partes importantes do trabalho e se entregar de vez ao operacional. O problema era grana. Não dava pra contratar ninguém, mas mesmo assim perguntamos ao Luquita se ele não teria alguém para indicar. Ele disse que sim e agendou a conversa.
No dia marcado, aparece em nosso escritório um sujeito chamado Paulo Bueno, meio tímido, depositando todas as suas fichas na disposição e na boa intenção para ofuscar a falta de experiência com escritório, gestão e afins. Contratamos mesmo assim e, vou deixar ele contar um pouco o que antecedeu este dia do lado de lá, antes de seguir com a minha versão. Com vocês, Paulo Bueno!
[quem escreveu o que vem a seguir fui eu próprio, tentando reproduzir da forma mais fiel possível o que ele me disse enquanto tomávamos cerveja aqui em casa na semana passada! ah, vale lembrar que ele revisou tudo antes de eu publicar.]
Eu trabalhei numa loja de piscina por nove anos e, num dia qualquer, anos antes dessa conversa citada acima, estava voltando para a loja no fim da tarde, puto da vida. Assim que entrei, cruzei com uma mulher que ia saindo com a camisa da FIEC, lá de Indaiatuba. Na minha cabeça aquela era a faculdade da cidade. Estava tão cego para poder sair e estudar, que confundi com a FATEC. Cheguei na moça e perguntei: como faz pra estudar aí?; "moço, aqui é só cursinho técnico da prefeitura, vai no Mundo Enem que eles podem te instruir melhor". Descobri que dava pra fazer cursinho, que tinha vários tipos de bolsa, financiamento, etc., e decidi ir para a faculdade.
Que alegria! Descobrir aquilo me deixou com foco 100%, motivação total para conseguir fazer o cursinho. O problema era o mesmo de sempre: grana. O cursinho era caro e eu já tinha desistido de fazer, mas era muito mais barato que o do Objetivo e eu fiquei meio assim. O cara viu que eu não conseguia pagar e fez em tantas vezes, abrindo uma exceção, que eu dei meu jeito, comecei a pagar e fazer como se fosse a última chance que eu tinha na vida.

Ficava com o material xerocado na mochila que andava com a marmita. Quando tava chovendo ou parava para almoçar, que não estava trabalhando, eu puxava o livro e estudava um pouco. Muitas vezes não entendia porra nenhuma porque não tinha professor pra explicar.
Uma vez estava uma chuvona forte, todo mundo parou e ficou na garagem da casa onde estávamos instalando a piscina, que era coberta. Eu adorava quando chovia para poder estudar. Abri a mochila, tirei meu livro e fiquei ali, lendo sentado num saco de cimento. Um cara me chamou e perguntou o que eu estava estudando. Expliquei rapidamente, pois não queria dar atenção. O cara disse: não quero te desanimar não, mas vou te falar uma coisa: você não vai conseguir essa bolsa não. Perguntei a ele o porquê. Ele disse "porque minha filha não conseguiu. Ela já faz há três anos, quer estudar direito, eu ralo pra caralho pra bancar e nunca sobrou uma bolsa pra ela". Ali me bateu o estalo: eu nunca pensei em fazer para pegar uma sobra. Eu vim pra brigar pela vaga de igual pra igual.
Fiz uma nota próxima de 700. Achei que ia dar bolsa tranquilo, talvez até uma federal, mas não queria porque era tempo integral. De repente eu recebo uma ligação do cara do cursinho falando parabéns. Era engenharia de produção na UFSCAR! Não fui porque era tanso na época, não queria estudar em tempo integral porque precisava trabalhar, mas sei que não ia morrer se tivesse ido. Ia ralar igual um cachorro pra me bancar lá, mas teria ido se fosse hoje. Acabei indo para a particular fazer engenharia civil, que era o curso que eu queria, mas hoje vejo que tanto faz.
No início, o que mais chamava a atenção era a desatualização curricular. Eles puxam uma base bem forte de matemática e física. Ali eu aprendi o ensino médio, coisas que eu já fazia intuitivamente, mas não sabia nem o nome, como física básica, por exemplo. Do lado de fora eu trabalhava com piscina. Estava como técnico, resolvendo problemas, lidando com clientes. Entregava, limpava, fazia pós vendas, tá ligado? Eu sabia que era foda pra caralho trampar no sol, às vezes tinha vazamento, tinha que quebrar chão de pedra pra achar. Eu sabia que para ganhar R$1.200 mudando de trampo eu ia ser o que? frentista? Trabalhar todo dia, sem feriado, natal, porra nenhuma pra ganhar a mesma coisa. A única coisa que eu podia fazer a médio e longo prazo era estudar.
Quando chegou próximo do último ano da facul eu avisei no serviço que ia sair e comecei a pesquisar estágio na internet. Um amigo, que pegava carona comigo, por um acaso trabalhava numa empresa de engenharia chamada Domus e falava muito bem da empresa por causa do capricho. Eu gosto de capricho. E aquilo me chamou a atenção.
Falei pra ele: velho, a hora que aparecer alguma porra lá você me fala, eu quero trampar com vocês. Tava decidido já. O interessante é que hoje eu vejo que eu era um tanso. Nunca nem abri o site da Domus, estava apenas fascinado pelas obras que, há 9 anos trabalhando em obra, eu nunca tinha visto nada tão organizado.
Até que um dia ele disse que tinha uma oportunidade lá, que ia ampliar para mais um estagiário e que ele ia agilizar o papo. Quando eu cheguei lá o grandão falou assim pra mim: o que você sabe da empresa? Nunca tinha aberto o site do bagulho! "Sei lá vei, vocês fazem casa". Animal do caralho, hahaha.
O que você viu em mim, brother?
Este é o momento em que eu volto a escrever como Victor mesmo :)
Bom, se você imaginou que o grandão citado no último parágrafo era eu, você acertou! Naquele dia, Flávio e eu entrevistamos o Paulo e decidimos contratá-lo com base na indicação do Luquita — não tínhamos muito tempo para procurar mais gente, tampouco imaginávamos encontrar outra pessoa que topasse fazer um teste não remunerado para começar.
O primeiro mês do Paulo na Domus não foi dos mais promissores: tinha pouco traquejo com tarefas administrativas, demorava para entregar algumas coisas, mas esbanjava boa vontade. Nós aguardamos. O segundo mês foi bem melhor. O terceiro foi excelente. E dali em diante nós presenciamos, dia após dia, uma ascensão meteórica — o cara trabalhava como se não houvesse amanhã. Não tinha tempo ruim. Não existia missão impossível. Era um tanque de guerra! Na verdade, o apelido que demos a ele na época foi Paulão Motosserra!
Um ano e pouco se passou até o dia em que ele se formou. Não havia outra opção a não ser convidá-lo para entrar na empresa como sócio, a atitude era 100% de dono, e foi isso que nós fizemos com muito prazer, embora ela tenha fechado suas portas uns seis meses depois. Era um momento em que os três iam em busca de um lugar no mercado e o Paulo voltou com aquelas ideias malucas de trabalhar de frentista de novo. Nós o convencemos a se inscrever para alguns processos seletivos de trainee na época — na nossa visão, de ex-trainees, uma excelente oportunidade de entrar no mercado recém-formado numa posição mais privilegiada. Ele topou e não demorou a ser contratado por uma empresa de tecnologia em São Paulo. Orgulho para todos nós! As condições não eram perfeitas, mas ele estava longe de ser frentista e já ganhava duas vezes mais o pró-labore que tirava da Domus.
Mais alguns meses se passaram, eu havia sido contratado como Diretor de Projetos numa instituição de ensino mineira que estava fazendo algumas movimentações na área de inovação. Pintou uma oportunidade de indicar alguém para ser meu par na empresa e eu lancei o nome dele. Fiz um disclaimer de que ele provavelmente não estaria pronto para o cargo, mas que rapidamente se desenvolveria para atuar à altura do desafio. Dito e feito. Mais uma contratação, desta vez para Diretor de Inovação de uma empresa com mil funcionários! Duplicou novamente o seu salário, em questão de meses!
Quase dois anos já se passaram desde então e, quando eu começo a falar sobre transição de carreira para inovação, não tem como não contar essa história. É a mais representativa que eu já vi e me dá muito orgulho ter participado ativamente deste processo como um todo. Paulo é um sujeito inteligente, bem intencionado e com soft skills de sobra, mas o volume de curiosidade que aquele tanso carrega é, para mim, o que faz com que ele seja capaz de dar saltos tão grandes na vida. Não há nada que ele olhe e acredite que não seja capaz de saber. E vai atrás até achar, descobrir, aprender, aplicar e por aí vai. É um baita exemplo para mim, que tive infância e adolescência mega fáceis e, de repente, sou par de um cara que veio de uma origem completamente diferente. Admiração real e amizade que extrapola o trabalho em camadas bem profundas.
Paulo aprendeu muita coisa na marra e gostaria de compartilhar essas experiências com quem não tem tempo ou dinheiro pra estudar formalmente. Pra isso, faremos um encontro na terça-feira que vem, às 19h30, para falar sobre essas transições dolorosas que fazemos na vida, mas que nos trazem muita realização e que a inovação pode ajudar em diversas frentes. Bora lá fazer um hora-bar?
Um abraço,
Victor
Tanso Letter mostrando una vez mas que no hay recetas magicas, solo trabajo, trabajo y trabajo, constancia pura!
Como nuevo fan de Tanso Letter y nuevo lector de un newsletter de inovacion, me arriesgo a compartir tal vez un tema para alguna edicion futura..... recomendacion de tanso books.
Saludos!