Um dia desses
vi uma sequência de stories de uma amiga no instagram dando aquela desabafada gostosa sobre seu trabalho:
‘Espírito de dono’ é o caralho! Eu não sou dona de porra nenhuma.
Sim, era no close friends, caso você esteja se perguntando. E não, obviamente, não vou revelar o nome da empresa — só digo que é uma dessas startups moderninhas. Ela ainda complementou:
Se estivesse tirando os mesmos R$60k/mês que ele tira era outra história, mas está longe de ser isso.
Não garanto que esteja ipsis litteris com o que ela falou, mas a mensagem era mais ou menos essa.
“Espírito de dono”
Segundo o ChatGPT, se refere a:
uma atitude proativa e responsável em relação ao que é de sua propriedade, cuidando e zelando pelos seus interesses e investindo tempo e recursos para melhorar e proteger o que lhes pertence.
É uma postura que demonstra um alto nível de comprometimento e engajamento, muitas vezes indo além do que é esperado ou exigido.
Não parece ruim, né? Mas analisemos no contexto da minha amiga: a definição oferecida pela I.A. deixa claro que a atitude se dá em função da propriedade e dos interesses do dono.
O que a empresa pede, no entanto, é que o funcionário exerça este comportamento em prol da propriedade e dos interesses de terceiros, enquanto ele próprio segue com suas perspectivas limitadas. É aí que começa a confusão.
Esta expressão
é mais uma que caiu no balde das más utilizações e más interpretações no mercado, tal como propósito, mindset, empatia, etc., já comentadas anteriormente nesta jovem newsletter.
Em teoria, faz todo sentido.
Na prática, já vem carregada de vieses.
— faz sentido para quem, Victor?
Para todos os envolvidos. Imagine a seguinte situação:
Você finalmente começa a tirar um projeto pessoal do papel. Concilia horas de trabalho noturno com a rotina do emprego diurno. Toma coragem para dar o próximo passo e pede demissão do trabalho.
Usa as próprias economias acumuladas através de anos de labuta para investir na ideia e se sustentar enquanto ela não se torna rentável. Chega um dado momento que as suas horas do dia não são mais suficientes e você decide contratar uma pessoa para te ajudar na missão.
Que tipo de comportamento você espera dela?
A parte do ‘alto nível de comprometimento’ me parece bastante adequada para responder essa pergunta. Vejamos, então, por outro ângulo:
Você saiu da faculdade com um diploma e uma enxurrada de teorias na cabeça. Não tem nenhuma experiência concreta, mas transborda ambições e potenciais. Alguém finalmente acredita em você entre centenas de candidatos igualmente qualificados.
Além de te dar espaço e estrutura para exercer seus conhecimentos na prática, se compromete a pagar um salário mensal, férias remuneradas, plano de saúde, vale-refeição, etc. Diz ainda que, se a empresa lucrar, você ganhará um bônus.
Qual é a sua postura para aproveitar esta oportunidade da melhor forma possível e se desenvolver rumo aos seus objetivos?
Ainda que não seja o emprego dos seus sonhos, parece haver uma certa responsabilidade em jogo.
Onde é que dá pau, então?
A expressão dá pau no momento em que o colaborador se sente subvalorizado e a empresa continua cobrando um engajamento com argumentos frágeis, sem o devido reconhecimento.
A partir deste momento, ‘espírito de dono’ passa a ser sinônimo de uma justificativa infundada para dar aquele gás extra. O subconsciente diz:
Porra, eu estou aqui há 3 anos, não ganhei um aumento decente, meu bônus não dá nem pra passear em Pindamonhangaba e essa galera vem pedir ‘espírito de dono’?
Só se for pra tirar férias em Fernando de Noronha, igual ao meu CEO. Eu vou fazer o mínimo aqui e pronto.
Está feita a merda. A expressão, que parece super coerente na teoria, passa a ter efeito oposto na prática.
Qual é a solução, sabichão?
Do lado das empresas, eu acredito que haja um abismo entre líderes e colaboradores. Uma distorção gigante entre o que cada um percebe como realidade.
Falta um poço de sensibilidade para ouvir e sentir os colaboradores. A ideia de que ‘eu pago seu salário em dia, portanto você deve sentar a bunda na cadeira e trabalhar’ está mais ultrapassada que HD externo e parece ter muita gente vivendo nela ainda.
Estamos falando de seres humanos. Complexos. Cheios de sonhos, medos e referências. Não dá pra acreditar que um RH mediano será capaz de manter dezenas, centenas ou milhares engajados com palestras virtuais sobre saúde mental. Precisa haver uma disposição real das lideranças em liderar. Olho no olho. Verdades sobre a mesa. Coisa rara, infelizmente.
Do lado das pessoas, minha recomendação é que você exerça o seu poder de escolha. Considere a hipótese de sair. De criar algo próprio, onde você faça as regras. Ou de buscar um novo ambiente, onde você caiba melhor.
Søren Kierkegaard, filósofo dinamarquês do século XIX, tomou as escolhas humanas como grande objeto de estudo ao longo de sua vida. Ele dizia que, entre dois caminhos, não importa qual seja o escolhido, de alguma forma, ele estará levemente errado.
Você é capaz. Esteja onde acredita que deve estar. Vá sabendo que há riscos pelo caminho, mas nada superará a dor de ficar, se te dói tanto assim.
Mas, se por algum motivo decidir ficar, fique de verdade. Encontre novamente o ‘espírito de dono’. Aquele, teórico, que faz sentido, mesmo sabendo que se arrependerá em algum momento.
Lembrem-se, tansos: o objetivo é ser feliz.
Não sofram em vão.
Passividade é o caralho.
Pra cima deles.
Um abraço,
Victor Sanacato
Gostei muito da parte que fala sobre a atuação da Gestão de Pessoas e liderança, penso ser muito coerente, urgente e transformador.
Quanto ao tema em si, sinto mais afinidade com sua amiga mesmo entendendo o que se pretende com "espirito de dono". Especialmente tendo base em ciências humanas, não tem como esse "incentivo" não sair pela culatra comigo, com isso retomo a discussão sobre Gestão de Pessoas e Liderança, que vai pro teu "pulo de gato". Existem outras formas e termos para se conseguir do colaborador a dedicação que se pretende com "espirito de dono", mas até a escolha das palavras importa, bem como o esclarecer dos conceitos. Eu me entrego ao trabalho porque nele reside aspectos nos quais acredito, fomento e quero construir. Claro, tenho uma remuneração adequada, mas espirito de dono? Espirito de dono é o caralho hahaha.